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Rafael Noris - Como você conheceu o haicai?
Gustavo Felicíssimo – Há dez anos, aproximadamente, conheci em Salvador o poeta Sérgio Marinho. Ele, assim como foi Leminski, é um orgulhoso faixa-preta de karatê. Foi quem me falou pela primeira vez sobre haikai. Nessa época eu andava pra todo lado com um caderninho de anotações e sempre que me encontrava, Marinho pedia-o e anotava um ou outro haikai de sua autoria. Alguns deles ombreiam com o melhor de Millôr Fernandes, tenho certeza. Sua obra, infelizmente, ainda anda dispersa e pouco publicada em nossos veículos especializados, pois o poeta é uma exceção. Avesso às publicações, sequer tem o cuidado de catalogar seus poemas que ficam guardados exclusivamente na memória. Assim, aquelas anotações acabaram por ser extremamente úteis quando resolvi publicá-lo em um tablóide literário do qual fui editor.
São da lavra de Sérgio Marinho os seguintes haicais:
todos os meus ais
cabem
num hai-kai
todos os meus ais
cabem
num hai-kai
em matéria de vôo
tira de letra
a borboleta
RN - Você disse certa vez na lista Haikai-l que começava a tratar o kigo como uma questão menor no que diz respeito ao haicai nacional. Explique um pouco melhor isso.
GF -
tira de letra
a borboleta
RN - Você disse certa vez na lista Haikai-l que começava a tratar o kigo como uma questão menor no que diz respeito ao haicai nacional. Explique um pouco melhor isso.
GF -
Não sou um poeta que escreve apenas de acordo com o protocolo do cânone tradicional, apesar de preferi-lo.
E isso vale para os sonetos, retrancas, terças rimas e redondilhas que escrevo. Mas ora, se no haikai o kigo é uma referência a um termo da natureza, uma estação do ano, por que me preocupar com ele se, ao tentar captar um instante dessa mesma natureza, o kigo já está intrinsecamente contido no haikai?
Certa feita fiz um haikai que possui três kigos, logo após li um texto do José Marins, na Haikai-l, aconselhando a não utilizarmos mais de um por haikai. Até hoje rola esse tipo de informação. Desprezei o poema, mas não o deletei. Um tempo depois, trocando idéia com Carlos Verçosa (autor de Oku -Viajando com Basho) sobre o tema, falei-lhe a respeito desse haikai. Pro meu espanto, ele aconselhou-me a recuperá-lo, argumentando que
Certa feita fiz um haikai que possui três kigos, logo após li um texto do José Marins, na Haikai-l, aconselhando a não utilizarmos mais de um por haikai. Até hoje rola esse tipo de informação. Desprezei o poema, mas não o deletei. Um tempo depois, trocando idéia com Carlos Verçosa (autor de Oku -Viajando com Basho) sobre o tema, falei-lhe a respeito desse haikai. Pro meu espanto, ele aconselhou-me a recuperá-lo, argumentando que
existem diversas formas de se fazer haikai, que a escola tradicional é apenas uma entre tantas.
E o mais importante: ele observou que essa é a realidade que vivo aqui em Ilhéus, no nordeste, que nosso inverno não é como o do sul do país. Aqui, no inverno, quando muito, venta e chove, apenas. Mas isso também acontece no verão! A regra é fazer sol, dar praia, cervejinha, sacou!? Ele também chamou atenção para os elementos estéticos contidos nesse haikai, o efeito de “eco” e “aliteração”, que em sua opinião dariam riqueza ao poema. Eis o haikai:
inverno em Ilhéus –
o sol arde em nossos corpos
como no verão.
Então é o seguinte:
inverno em Ilhéus –
o sol arde em nossos corpos
como no verão.
Então é o seguinte:
não importa como as estações se apresentam ao longo do ano, mas as impressões que a natureza nos causa, seus efeitos no espírito do poeta, levando-o a refletir sobre a própria existência.
E mais: essa coisa de seguir cegamente os protocolos de um determinado cânone é coisa de quem não consegue renová-lo. Não estou dizendo que ando a renovar coisa alguma, apenas que não uso tapa-olhos.
RN - Como você acha que o haicai pode transformar a percepção das pessoas diante do estar-no-mundo?
GF - Qualquer tipo de arte contribui com a cosmovisão de quem a pratica, mas o haikai pode ir além se adotado como uma forma de ver e viver o mundo pelo viés zenista. Trata-se de uma atitude de vida. Mas isso você pode fazer sem ser um poeta que se dedica ao haikai. Aliás, há quem diga que não precisa sequer ser poeta pra fazer haikai. Essa afirmação só encontra receptividade se considerarmos que o haikai não é um poema em si.
*** *** ***
Haicais de Gustavo Felicíssimo:
esforço tremendo –
uma gaivota insistente
vai vencendo o vento
outra vez florida
a minha enorme alegria –
pomar de cajueiros
algo mais perfeito?
as folhas mortas no campo
fecundam a terra
ardendo em desejos
se inflama a gatinha em chamas -
ásperos gracejos
a moça que passa
ofusca o brilho do sol –
esqueço a cerveja
um homem vaidoso
viu-se na lâmina d’água –
encontrou Narciso
eu sonho acordado
com o próximo poema –
mas ele não vem
Gustavo Felicíssimo, 1971, é poeta e ensaísta. Natural de Marília, SP, está radicado na Bahia desde 1993. Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Publicou “Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna”, Editus/Via Litterarum. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação dos livros “Firmino Rocha: poemas escolhidos e inéditos”, Via Litterarum, 2008; “Plínio de Almeida, obra reunida”, Editus, 2009, e “Rascunhos do absurdo”, de Jorge Elias Neto, Flor & Cultura (Espírito Santo). Está preparando a coleção Dendê no haikai, com cinco livros de importantes haikaístas baianos a serem publicados brevemente.
RN - Como você acha que o haicai pode transformar a percepção das pessoas diante do estar-no-mundo?
GF - Qualquer tipo de arte contribui com a cosmovisão de quem a pratica, mas o haikai pode ir além se adotado como uma forma de ver e viver o mundo pelo viés zenista. Trata-se de uma atitude de vida. Mas isso você pode fazer sem ser um poeta que se dedica ao haikai. Aliás, há quem diga que não precisa sequer ser poeta pra fazer haikai. Essa afirmação só encontra receptividade se considerarmos que o haikai não é um poema em si.
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Haicais de Gustavo Felicíssimo:
esforço tremendo –
uma gaivota insistente
vai vencendo o vento
outra vez florida
a minha enorme alegria –
pomar de cajueiros
algo mais perfeito?
as folhas mortas no campo
fecundam a terra
ardendo em desejos
se inflama a gatinha em chamas -
ásperos gracejos
a moça que passa
ofusca o brilho do sol –
esqueço a cerveja
um homem vaidoso
viu-se na lâmina d’água –
encontrou Narciso
eu sonho acordado
com o próximo poema –
mas ele não vem
Gustavo Felicíssimo, 1971, é poeta e ensaísta. Natural de Marília, SP, está radicado na Bahia desde 1993. Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Publicou “Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna”, Editus/Via Litterarum. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação dos livros “Firmino Rocha: poemas escolhidos e inéditos”, Via Litterarum, 2008; “Plínio de Almeida, obra reunida”, Editus, 2009, e “Rascunhos do absurdo”, de Jorge Elias Neto, Flor & Cultura (Espírito Santo). Está preparando a coleção Dendê no haikai, com cinco livros de importantes haikaístas baianos a serem publicados brevemente.
bem bacana essa ideia das entrevistas; dessa primeira, gostei muito, tanto do entrevistado como do modo de se conduzir a conversa.
ResponderExcluirValeu! Gustavo é mesmo adorável, em breve teremos mais ;) braço!
ResponderExcluirMuito legal os haicais e pensamentos do Gustavo, também foi bacana da parte dele (ou foi sua?) de colocar os haicais de Sérgio Marinho, não o conheço mas são muito bons.
ResponderExcluirAté mais!
Pedro
Foi o Gustavo quem mandou e concordo com o que disse ;) Valeu!
ResponderExcluirParabéns pela entrevista - tudo de acordo - e eu concordo em boa parte.
ResponderExcluirGustavo sabe, ou tem um feeling (intuição - sem ser ingênua) ótimo.
:)