Não é todo dia que surge um poeta de haicai. Para esse tipo de poeta são precisos muitos anos, o observar das estações com sentidos hábeis e mente alerta, a escrita apurada que vem de insistente aprendizado, leituras e buscas.
Quando comecei a ler os poemas de Luiz Gustavo Pires, tive a forte impressão de haver descoberto um poeta, a pedra preciosa depois de meticuloso garimpo. Com esta entrevista ele também se revela um joalheiro na mestria de afinado cinzel na poética de sua arte.
Em seus dados nada de títulos, instituições, vaidades que tais. Apenas a claridade da sua poesia, a estrela que brilha em sua vida de poeta. Um livro, um prêmio. Gaúcho de Tramandaí, 50 anos, se autodefine como policial civil, poeta, companheiro, pai e amigo.
José Marins: Como foi que conheceu o haicai e aprendeu a realizá-los tão bem?
Luiz Gustavo Pires: Meu contato com o haicai foi no início dos anos 80. Lembro que li algumas traduções de haicais de Bashô, feitas por Olga Savary, na Biblioteca Pública de Porto Alegre. O primeiro haicai que me chamou a atenção foi este:
As imagens, cheias de símbolos, deixaram-me tonto. Muito em tão pouco. Por coincidência, também li esse haicai no livro Letra de Forma, de Osvaldo Cícero Wronski, poeta de Londrina/PR. Ler Paulo Leminski, na mesma época, Haroldo de Campos, Décio Pignatari , Octávio Paz, Ezra Pound e muitos outros, também me levou a desvendar o haicai. Me fascinou e eu me aprofundei. Tinha-se pouca literatura sobre o haicai no Brasil. Era difícil. Paulo Leminski foi um vetor. Lia sua poesia, seus haicais, e era aquilo que eu queria fazer. Em Porto Alegre, lembro, Mário Pirata, Ricardo Silvestrin, Alexandre Brito e outros, praticavam o haicai à moda leminskiana. Faziam poesia em mimeógrafo, cartazes e camisetas e vendiam pelos bares, praças e parques da Cidade. Daí, vieram os exercícios primeiros do poemeto. Meu primeiro quase-haicai, escrito em 1985, foi:
Vieram outros e mais outros. Adotei a idéia de quantidade primeiro. Mas a produção ainda era muito pequena. Depois veio a qualidade. Mestre Goga diz em Goga e Haicai – um sonho brasileiro:
Este haicai foi um divisor de águas. Cresci muito em todos os sentidos. Mas sempre fui honesto comigo mesmo e autocrítico. Sou um homem tímido e muito reservado. Nunca projetei holofotes sobre mim. Tudo o que eu escrevia era guardado. Não mostrava a ninguém. E durante anos eu ficava sem escrever. De repente, voltava à ativa e (re)criava. Após um câncer de que fui acometido, atirei-me de corpo e alma à poesia. Resolvi mostrar o que sempre guardei, pois não sabia até onde iria. Nem minha esposa, Claudia, lia o que eu escrevia. Ela conhecia Quadrantal, mas os novos poemas e haicais veio a ler no ano passado. Foi quando ela passou a se interessar pela poesia e pelo haicai. Durante mais de 20 anos minha poesia hibernou. Me perguntei: por que guardar meus poemas e haicais? E hoje, estão aí em meus blogs, escarceunario (poemas), setecetaras (haicais) e manto de plumas (tankas).
José Marins: Nota-se em seus haicais e tankas, uma apurada técnica que resulta em uma poética de fina tessitura. Entretanto, você cita grandes poetas em suas leituras, mas nenhum mestre do haicai. Como se explica o desenvolvimento de sua arte haicaística?
Luiz Gustavo Pires: Já havia lido muito sobre vários autores japoneses tradicionais. No Brasil são poucos os autores de Tanka. E poucos livros publicados. Gosto muito do que o paranaense Wilson Bueno escreveu. Considero um tankaísta de primeira qualidade com Pequeno tratado de brinquedos (1996) e Pincel de Kyoto (2008). Estou adorando essa nova prática. E procuro, quase sempre, adotar a métrica tradicional, 5-7-5 7-7. Os temas sim, são variados. Também me dou ao luxo de extrapolar todas as regras existentes e criar. O Tanka te dá liberdade de escrever e expor tuas idéias. Tuas metáforas, estas, que o haicai não consente. O simbolismo, surrealismo, cubo-futurismo e o concretismo fazem parte da minha escola. Metáforas, aliterações, assonâncias, sinestesias, alegorias, anagramas estão em meus poemas. Forma e fundo. Tudo isso faz com que o leitor se sinta aterrorizado, pensativo, cheio de fantasmas. Cabe ao poeta criar o maior número de fantasmas ao leitor, e este, interpretá-lo à sua maneira. Minha poesia toda é assim. São meus fantasmas sendo libertos e aterrorizando o leitor, que cria novos fantasmas dentro de si.
Já com o haicai isso não ocorre. Quando a idéia é boa vou até o final. Quando sinto que é ruim não perco tempo e deixo de lado. Trago toda bagagem da vida para acrescer ao haicai. Nem sempre tudo o que escrevo é um haicai. Alguns são tercetos ou triversos, como tu chama (gosto deste termo). Às vezes me pergunto se o que escrevo é haicai. Escrevo a cena inteira e daí parto para a concisão. A busca é sempre pelo inédito. O haicai quase sempre sai pronto. Sou um autodidata. E talvez, por ser autodidata no haicai, eu tenha sido perseverante mais do que outros, que buscaram ajuda em oficinas de haicais ou tiveram seus mestres. Meus mestres foram a leitura e a perseverança. Foram anos de tentativas e de prática. De muitos erros e acertos. De várias observações. E mesmo assim continuo errando, pois me considero um aprendiz na arte de fazer haicai. Humildade: creio que esse seja o segredo. Digo para os iniciantes: humildade, observação e percepção. Ouvir, ver, falar, sorrir, cheirar, tocar, chorar, sentir. Abrir os olhos para tudo e todas as coisas que estão ocorrendo. Observar todos os instantes. Os sentidos. Fechar os olhos e sentir o vento. O frio e o calor. Tocar uma flor, uma folha. Voar com uma borboleta. Tocar a água do riacho, do mar, da poça d’água. Ver a lua em todos os instantes, inclusive na poça d’água. Ouvir o canto dos pássaros. O ruído dos insetos. O som das ondas do mar. Sentir o gosto da névoa da aurora. Os remos tocando a lagoa. Ouvir o silêncio. Mirar os campos e as montanhas distantes. Penso que era assim que os grandes mestres do haicai, Bashô, Issa, Buson, Shiki e tantos outros, vivenciavam a natureza, infinitamente mais do que nós hoje vivenciamos, e criavam seus haicais. Praticar o haicai tradicional sentado numa cadeira é possível, mas me soa artificial. O bom haicaísta percebe essa diferença. Como escrever sobre a neve se nunca a vivenciou? Sobre a geada, se nunca caminhou sobre ela? Para mim, o contato direto com a natureza é primordial para um bom haicai tradicional. Os clichês estão aí por todos os lados. Pobres libélulas, vaga-lumes, flores de cerejeiras, jogadas ao léu por poetas em seus poemas, quando nunca em momento algum foram contempladas por eles. O haicai se popularizou de tal forma, que vejo um processo de banalização dele. Os Mestres todos estão se revirando nas covas. Vejo o haicai muito engessado. É fácil para um principiante realizar um haicai, pois tudo me soa muito mecânico. Falta-lhes profundidade e percepção dos sentidos. Imaginação. Parece-me que as regras ditam o haicai. Mas, tudo é mutável para o bem da poesia. Novas correntes e novos movimentos surgem de tempos em tempos. A arte em geral, sofre altos e baixos. Sofre invasões. Tudo é benéfico para a poesia. Ao haicai também. Acho que o caminho da poesia e do haicai, é a reinvenção.
José Marins: Você é um haicaísta profícuo, fecundo. Qual será o futuro de sua produção? Seus planos?
Luiz Gustavo Pires: Minha fecundidade vem da necessidade de escrever. Minha produção é grande, mas procuro sempre fazê-la com qualidade. Claro, nem tudo que posto no Facebook ou em meus Blogs tem valor literário, mas é gratificante. Me faz pensar. E os leitores pensarem. Hoje, por exemplo, meu tempo está todo voltado para o haicai e o tanka. Deixei um pouco de lado meus poemas. Escrevo haicai porque estou sempre ligado. Vivencio o haicai a todo instante. Dirijo o carro e observo tudo à minha volta. Da mesma forma quando caminho. Fotografo e já penso num haicai. Abro a janela e visualizo as imagens. E se vejo um haicai, imediatamente guardo-o em minha mente e depois transponho para o papel, no caso, o computador. Já os tankas são retratos do diário/cotidiano e do passado de muitos conflitos. Quanto ao futuro, pretendo lançar um livro de haicais: Telhado de Vidro, que está sendo gestado. O nome vem do telhado do jardim de inverno da nossa antiga casa, uma chácara na Serra Gaúcha, onde durante 10 anos, em meio a natureza, vivenciei e criei muitos haicais.
Não pretendo vendê-lo. Tenho a idéia de encaminhar para Bibliotecas de Escolas, talvez com palestras sobre o haicai. Levá-lo às crianças. Presentear amigos poetas e não poetas. Enfim, tenho um árduo caminho até deixar o livro pronto. E penso que será o único que escreverei sobre haicai. Aí vou me dedicar aos poemas, onde tenho outros 4 livros praticamente prontos. Quem sabe, num futuro próximo, um livro de Tankas; mas preciso amadurecer. Tenho a idéia também de um livro sobre Haigas. Estou pesquisando. Antigos e modernos. Mas esse é um trabalho bem mais complexo. Talvez, com parceria. São planos. E como planos, podem sofrer alterações ou nunca saírem do plano das idéias.
Mais haicais de Luiz Gustavo Pires:
vai-se o agosto -
em meus antigos poemas
as nuvens cinzentas
hoje o inverno
não me causa desconforto -
os velhos amigos
tarde de agosto –
continua o vento de ontem
a soprar as folhas
nas ondas do mar
minha sombra se afoga -
entardecer de inverno
agosto cinzento –
nem o vento insistente
tira o sono do cão
chuvas que não vêm -
nesses dias amornados
o inverno fenece
também já se movem
as sombras nas paredes -
gélida manhã
ameixa-amarela -
minha parceira de viagem
na estrada vazia
dias alongados -
também já cresce o bigode
do filho mais novo
imerso em silêncio
já nem me lembrava mais
da mosca de inverno
noite acolhedora -
na xícara de café
bebo o luar de inverno
Tankas de Luiz Gustavo Pires:
segue seu rumo
após tanta atribulação
o gavião exausto
a escuridão se une a mim
na borda deste penhasco
em minha viagem
espalhado pelos campos
há um vento cortante
encharcado de saudades
ouço o rumor da tua voz
olho à minha volta
e só vejo a estiagem
que cobre os campos
sinto a falta da tua presença
nesta tarde de inverno
à beira da estrada
ainda repousa o espantalho
no milharal seco
esta é uma noite de luar
pra ler sua carta de amor
Quando comecei a ler os poemas de Luiz Gustavo Pires, tive a forte impressão de haver descoberto um poeta, a pedra preciosa depois de meticuloso garimpo. Com esta entrevista ele também se revela um joalheiro na mestria de afinado cinzel na poética de sua arte.
Em seus dados nada de títulos, instituições, vaidades que tais. Apenas a claridade da sua poesia, a estrela que brilha em sua vida de poeta. Um livro, um prêmio. Gaúcho de Tramandaí, 50 anos, se autodefine como policial civil, poeta, companheiro, pai e amigo.
José Marins: Como foi que conheceu o haicai e aprendeu a realizá-los tão bem?
Luiz Gustavo Pires: Meu contato com o haicai foi no início dos anos 80. Lembro que li algumas traduções de haicais de Bashô, feitas por Olga Savary, na Biblioteca Pública de Porto Alegre. O primeiro haicai que me chamou a atenção foi este:
trégua de vidro:
o som da cigarra
aturde rochas
As imagens, cheias de símbolos, deixaram-me tonto. Muito em tão pouco. Por coincidência, também li esse haicai no livro Letra de Forma, de Osvaldo Cícero Wronski, poeta de Londrina/PR. Ler Paulo Leminski, na mesma época, Haroldo de Campos, Décio Pignatari , Octávio Paz, Ezra Pound e muitos outros, também me levou a desvendar o haicai. Me fascinou e eu me aprofundei. Tinha-se pouca literatura sobre o haicai no Brasil. Era difícil. Paulo Leminski foi um vetor. Lia sua poesia, seus haicais, e era aquilo que eu queria fazer. Em Porto Alegre, lembro, Mário Pirata, Ricardo Silvestrin, Alexandre Brito e outros, praticavam o haicai à moda leminskiana. Faziam poesia em mimeógrafo, cartazes e camisetas e vendiam pelos bares, praças e parques da Cidade. Daí, vieram os exercícios primeiros do poemeto. Meu primeiro quase-haicai, escrito em 1985, foi:
pé-de-vento
a poeira anda nervosa –
será o saci dentro?
Vieram outros e mais outros. Adotei a idéia de quantidade primeiro. Mas a produção ainda era muito pequena. Depois veio a qualidade. Mestre Goga diz em Goga e Haicai – um sonho brasileiro:
“não se preocupe com a qualidade, componha apenas“.Eu já pensava dessa maneira, muito antes de lê-lo. Era assim com minha poesia. Claro, a qualidade para mim sempre foi imprescindível e passei a lapidar tudo o que escrevia. Lembranças de infância foram o ponto de partida, já que toda ela foi em contato direto com a natureza, em uma cidade do interior gaúcho, Rolante. Cheia de rios, riachos, morros, colinas, montanhas, florestas, campos, fauna e flora, clima e vivências. Tudo isso veio à tona. Eu lia tudo sobre poesia. Todos os poetas, brasileiros e estrangeiros e de todas as épocas. Do clássico ao concretismo. O que era bom eu absorvia. Com o tempo, tu bem sabes, vamos crescendo naquilo que fazemos. Comigo não foi diferente. Ao final dos anos 80 comecei a praticar o haicai com mais afinco. Foi quando saiu meu livro Quadrantal, não de haicais, mas de poemas mais concisos do que os que crio hoje. Minha poesia era urbana. Visceral. Era algo que eu trazia há muito dentro de mim, desde os meados dos anos 70, e resolvi publicá-los. Vencer o Prêmio Mauá de Literatura (Porto Alegre, 1989) me deu o empurrão necessário. Encantei-me com a palavra. Participei de encontros literários por aí afora, entrei em contato com diversas correntes da poesia, dentre elas o haicai. Em 1989, quando estava em Florianópolis lançando meu livro, fiz este haicai:
árvore grande:
nesta manhã de verão
não há melhor sombra
[sob a figueira da praça XV em Florianópolis – verão/dezembro/1989]
nesta manhã de verão
não há melhor sombra
[sob a figueira da praça XV em Florianópolis – verão/dezembro/1989]
Este haicai foi um divisor de águas. Cresci muito em todos os sentidos. Mas sempre fui honesto comigo mesmo e autocrítico. Sou um homem tímido e muito reservado. Nunca projetei holofotes sobre mim. Tudo o que eu escrevia era guardado. Não mostrava a ninguém. E durante anos eu ficava sem escrever. De repente, voltava à ativa e (re)criava. Após um câncer de que fui acometido, atirei-me de corpo e alma à poesia. Resolvi mostrar o que sempre guardei, pois não sabia até onde iria. Nem minha esposa, Claudia, lia o que eu escrevia. Ela conhecia Quadrantal, mas os novos poemas e haicais veio a ler no ano passado. Foi quando ela passou a se interessar pela poesia e pelo haicai. Durante mais de 20 anos minha poesia hibernou. Me perguntei: por que guardar meus poemas e haicais? E hoje, estão aí em meus blogs, escarceunario (poemas), setecetaras (haicais) e manto de plumas (tankas).
José Marins: Nota-se em seus haicais e tankas, uma apurada técnica que resulta em uma poética de fina tessitura. Entretanto, você cita grandes poetas em suas leituras, mas nenhum mestre do haicai. Como se explica o desenvolvimento de sua arte haicaística?
Luiz Gustavo Pires: Já havia lido muito sobre vários autores japoneses tradicionais. No Brasil são poucos os autores de Tanka. E poucos livros publicados. Gosto muito do que o paranaense Wilson Bueno escreveu. Considero um tankaísta de primeira qualidade com Pequeno tratado de brinquedos (1996) e Pincel de Kyoto (2008). Estou adorando essa nova prática. E procuro, quase sempre, adotar a métrica tradicional, 5-7-5 7-7. Os temas sim, são variados. Também me dou ao luxo de extrapolar todas as regras existentes e criar. O Tanka te dá liberdade de escrever e expor tuas idéias. Tuas metáforas, estas, que o haicai não consente. O simbolismo, surrealismo, cubo-futurismo e o concretismo fazem parte da minha escola. Metáforas, aliterações, assonâncias, sinestesias, alegorias, anagramas estão em meus poemas. Forma e fundo. Tudo isso faz com que o leitor se sinta aterrorizado, pensativo, cheio de fantasmas. Cabe ao poeta criar o maior número de fantasmas ao leitor, e este, interpretá-lo à sua maneira. Minha poesia toda é assim. São meus fantasmas sendo libertos e aterrorizando o leitor, que cria novos fantasmas dentro de si.
Explicar a poesia não faz parte do processo. Não cabe ao poeta explicar o poema. Cabe a ele, criá-lo. O haicai está inserido nesse contexto. Não se explica. Se expõe. Se sugere o caminho. Possibilita-se um caminho e orienta-se o leitor até que ele materialize a idéia. Essa é a proposta do haicai.Sou organizado, metódico, como bom virginiano, mas não ao extremo. Reacionário. Por vezes antagônico, o que me deixa louco comigo mesmo. Organizo meus poemas. Desorganizo-os. (Des)construo-os. Reconstruo-os. Levo o tempo necessário para amadurecê-los. E o engraçado é que, passado algum tempo, releio-os e quase sempre acrescento ou retiro alguma palavra de um poema. Acho que nunca os finalizo.
Já com o haicai isso não ocorre. Quando a idéia é boa vou até o final. Quando sinto que é ruim não perco tempo e deixo de lado. Trago toda bagagem da vida para acrescer ao haicai. Nem sempre tudo o que escrevo é um haicai. Alguns são tercetos ou triversos, como tu chama (gosto deste termo). Às vezes me pergunto se o que escrevo é haicai. Escrevo a cena inteira e daí parto para a concisão. A busca é sempre pelo inédito. O haicai quase sempre sai pronto. Sou um autodidata. E talvez, por ser autodidata no haicai, eu tenha sido perseverante mais do que outros, que buscaram ajuda em oficinas de haicais ou tiveram seus mestres. Meus mestres foram a leitura e a perseverança. Foram anos de tentativas e de prática. De muitos erros e acertos. De várias observações. E mesmo assim continuo errando, pois me considero um aprendiz na arte de fazer haicai. Humildade: creio que esse seja o segredo. Digo para os iniciantes: humildade, observação e percepção. Ouvir, ver, falar, sorrir, cheirar, tocar, chorar, sentir. Abrir os olhos para tudo e todas as coisas que estão ocorrendo. Observar todos os instantes. Os sentidos. Fechar os olhos e sentir o vento. O frio e o calor. Tocar uma flor, uma folha. Voar com uma borboleta. Tocar a água do riacho, do mar, da poça d’água. Ver a lua em todos os instantes, inclusive na poça d’água. Ouvir o canto dos pássaros. O ruído dos insetos. O som das ondas do mar. Sentir o gosto da névoa da aurora. Os remos tocando a lagoa. Ouvir o silêncio. Mirar os campos e as montanhas distantes. Penso que era assim que os grandes mestres do haicai, Bashô, Issa, Buson, Shiki e tantos outros, vivenciavam a natureza, infinitamente mais do que nós hoje vivenciamos, e criavam seus haicais. Praticar o haicai tradicional sentado numa cadeira é possível, mas me soa artificial. O bom haicaísta percebe essa diferença. Como escrever sobre a neve se nunca a vivenciou? Sobre a geada, se nunca caminhou sobre ela? Para mim, o contato direto com a natureza é primordial para um bom haicai tradicional. Os clichês estão aí por todos os lados. Pobres libélulas, vaga-lumes, flores de cerejeiras, jogadas ao léu por poetas em seus poemas, quando nunca em momento algum foram contempladas por eles. O haicai se popularizou de tal forma, que vejo um processo de banalização dele. Os Mestres todos estão se revirando nas covas. Vejo o haicai muito engessado. É fácil para um principiante realizar um haicai, pois tudo me soa muito mecânico. Falta-lhes profundidade e percepção dos sentidos. Imaginação. Parece-me que as regras ditam o haicai. Mas, tudo é mutável para o bem da poesia. Novas correntes e novos movimentos surgem de tempos em tempos. A arte em geral, sofre altos e baixos. Sofre invasões. Tudo é benéfico para a poesia. Ao haicai também. Acho que o caminho da poesia e do haicai, é a reinvenção.
José Marins: Você é um haicaísta profícuo, fecundo. Qual será o futuro de sua produção? Seus planos?
Luiz Gustavo Pires: Minha fecundidade vem da necessidade de escrever. Minha produção é grande, mas procuro sempre fazê-la com qualidade. Claro, nem tudo que posto no Facebook ou em meus Blogs tem valor literário, mas é gratificante. Me faz pensar. E os leitores pensarem. Hoje, por exemplo, meu tempo está todo voltado para o haicai e o tanka. Deixei um pouco de lado meus poemas. Escrevo haicai porque estou sempre ligado. Vivencio o haicai a todo instante. Dirijo o carro e observo tudo à minha volta. Da mesma forma quando caminho. Fotografo e já penso num haicai. Abro a janela e visualizo as imagens. E se vejo um haicai, imediatamente guardo-o em minha mente e depois transponho para o papel, no caso, o computador. Já os tankas são retratos do diário/cotidiano e do passado de muitos conflitos. Quanto ao futuro, pretendo lançar um livro de haicais: Telhado de Vidro, que está sendo gestado. O nome vem do telhado do jardim de inverno da nossa antiga casa, uma chácara na Serra Gaúcha, onde durante 10 anos, em meio a natureza, vivenciei e criei muitos haicais.
a lua cheia
do telhado de vidro
devagar se retira
Não pretendo vendê-lo. Tenho a idéia de encaminhar para Bibliotecas de Escolas, talvez com palestras sobre o haicai. Levá-lo às crianças. Presentear amigos poetas e não poetas. Enfim, tenho um árduo caminho até deixar o livro pronto. E penso que será o único que escreverei sobre haicai. Aí vou me dedicar aos poemas, onde tenho outros 4 livros praticamente prontos. Quem sabe, num futuro próximo, um livro de Tankas; mas preciso amadurecer. Tenho a idéia também de um livro sobre Haigas. Estou pesquisando. Antigos e modernos. Mas esse é um trabalho bem mais complexo. Talvez, com parceria. São planos. E como planos, podem sofrer alterações ou nunca saírem do plano das idéias.
Mais haicais de Luiz Gustavo Pires:
vai-se o agosto -
em meus antigos poemas
as nuvens cinzentas
hoje o inverno
não me causa desconforto -
os velhos amigos
tarde de agosto –
continua o vento de ontem
a soprar as folhas
nas ondas do mar
minha sombra se afoga -
entardecer de inverno
agosto cinzento –
nem o vento insistente
tira o sono do cão
chuvas que não vêm -
nesses dias amornados
o inverno fenece
também já se movem
as sombras nas paredes -
gélida manhã
ameixa-amarela -
minha parceira de viagem
na estrada vazia
dias alongados -
também já cresce o bigode
do filho mais novo
imerso em silêncio
já nem me lembrava mais
da mosca de inverno
noite acolhedora -
na xícara de café
bebo o luar de inverno
Tankas de Luiz Gustavo Pires:
segue seu rumo
após tanta atribulação
o gavião exausto
a escuridão se une a mim
na borda deste penhasco
em minha viagem
espalhado pelos campos
há um vento cortante
encharcado de saudades
ouço o rumor da tua voz
olho à minha volta
e só vejo a estiagem
que cobre os campos
sinto a falta da tua presença
nesta tarde de inverno
à beira da estrada
ainda repousa o espantalho
no milharal seco
esta é uma noite de luar
pra ler sua carta de amor
Grato ao editor deste Blogue-Revista, Rafael Noris, por aceitar a colaboração e pelo reconhecimento de mais um haicaísta brasileiro.
ResponderExcluirEu que agradeço pelo rico conteúdo que você sempre traz para nós, Marins!
ExcluirAbs
sensacional!
ResponderExcluirentrevista Bárbara...
Mestre Luiz Gustavo Pires, UM abraço.
Sensacional mesmo, entrevistador e entrevistado de parabéns :)
ExcluirParabéns ao blog-Revista e ao ilustre entrevistador JMarins.
ResponderExcluirAcompanho os haicais de Gustavo Pires no FaceBook
e no Blogue Telhado de Vidro. Aprendo muito vendo os seus trabalhos. Telhado de Vidro é de fino trato com as imagens e haicais.
Um abraço
Com certeza, Elisa! O Luiz Gustavo Pires tem uma ótima produção literária, é encantador :)
ExcluirBoa noite, excelente entrevista!Parabéns!
ResponderExcluirAbraços, Vanice.
O professor Marins é demais!
ExcluirTeu blog é ótimo!Parabéns!
ResponderExcluirVem conhecer o meu:
leiakarine.blogspot.com
Obrigado, Karine!
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirParabéns!
:)
ExcluirUma bela entrevista. Já conhecia alguns haicais do poeta Luiz Gustavo Pires.(que li no Recanto das Letras)Um mestre, com certeza. Muito bom conhecer mais sobre ele. Para mim está sendo um rico aprendizado. Abraços
ResponderExcluirOlá, Regina! Fico feliz que o conteúdo da entrevista tenha te ajudado.
ExcluirAbs
parabéns pela divulgação
ResponderExcluir:)
O Marins sempre com suas grandes contribuições ^^
ExcluirBelíssimo artigo sobre o Haicai..
ResponderExcluirGostei muito!
Gosto de escrevê-los, só não sei se estou seguindo as regras corretas.
Quando tiver um tempinho visite a minha página.
Abraços literários.
http://didimogusmao.blogspot.com.br/search/label/HAICAIS
Olá, Dídimo, há vários caminhos do haicai, não só o tradicional. Pelo que vi os seus não seguem, mas não há problema algum nisso :-)
ExcluirAbs
gostei do site.
ResponderExcluirtambém produzo alguns haicais que estão no meu blog:
www.micropoetricidade.blogspot.com
aguardo vocês por lá,
abs.
Bacana, Carlos!
ExcluirAbs
Osvaldo Cicero Wronski nao eh poeta de Londrina e sim de Campo Mourao , Parana. Obrigada
ResponderExcluirObrigado pela informação. Não vou alterar no post pois acho que não é necessário, seu comentário aqui poderá esclarecer :)
ExcluirAbs!
Para mim Haikai é a percepção plena de um instante...
ResponderExcluircores tom pastel
tênue luzir da tarde-
é sol de inverno
Adorei a entrevista, adorei este blog, estou seguindo!!! Parabéns!!! Abraços!
também acompanho a poesia do luiz gustavo pires pelo face. importante saber das referências e processos de criação do poeta. ótima entrevista. evoé!
ResponderExcluir