segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

PANORAMA DO HAICAI NACIONAL: Celso Pestana

Celso Pestana é, acima de tudo, um cara bem-humorado e contestador. Sou fã dele e fico sempre atento aos seus pitacos nos grupos de discussão de haicai. Arrisco traduzir ele numa expressão: Celso Pestana é um mestre fanfarrão. Sei que ele não vai com a cara deste termo, mas é assim que o encaro. Se ele não aceitar, prometo pagar um chope como desculpas.

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Rafael Noris - Como você conheceu o haicai?

Celso Pestana - Já bem adulto, graças a Deus.

Millor Fernandes escrevia nas primeiras páginas da Veja, e numa das edições publicou a sua tradução do famoso haicai de Bashô, o da rã. Gosto de folhear toda a revista antes de me deter em algum assunto, mas lembro-me que naquele dia parei ali mesmo, fascinado por aquele poema absolutamente objetivo, ou no limite da objetividade que é facultada a um ser humano, mas, apesar disso ou por isso mesmo, pleno de um sentimento subjetivo – sentimento esse que, intuitivamente, percebi como “universal”. Como sou muito metido a racional, para mim
foi como uma epifania ver como o sentimento pode aflorar com mais força se, ao invés de falarmos dele, mostrarmos uma cena comum, vista com “outros olhos”.
Pouco tempo depois, dei com o precioso livro do Prof. Franchetti numa livraria do Centro do Rio; comprei o meu primeiro computador, entrei para a Haikai-l, uma lista de discussão onde, entre tapas e beijos, aprendi a valorizar o kigo; e comecei a descobrir o que era esse outro olhar.

RN - Uma provocação: Você é considerado uma pessoa irreverente. Gostaria de saber como você adequa esta postura com a prática do haicai.

CP - Esse é o tipo de questão de quem ouviu cantar o galo do budismo e não sabe aonde. Como os ocidentais não têm paciência para longas meditações, tentam fazer do haicai uma de suas pílulas de efeito rápido para alcançar um estado búdico qualquer. Colocam o poema no altar de uma religião que conhecem mal, e por isso mesmo perdem a essência dos dois, rejeitando, sistematicamente, versos como estes:

O peido do cavalo
Me acorda para ver –
Pirilampos...
Issa

E este não é um poema pontual. Issa fez uma série deles com esse tema. Graças a Deus, a arte do haicai, como a arte e a arte de viver em geral, não são atributos exclusivos dos bons meninos de postura politicamente correta, muito pelo contrário:
Buda, Jesus Cristo, Bashô, Mozart, Picasso, Einstein, todos eram, em princípio, irreverentes, ou não teriam achado outras formas de ver o mundo.
É claro que entre a minha irreverência - o menor dos meus “defeitos” - e a de qualquer desses homens há um abismo. Mas se meus haicais são ruins, não seriam melhores se eu beijasse os pés de um mestre qualquer.

RN - Haicai é literatura séria ou passatempo (ou ambos ou nenhum)? Você está com algum projeto neste gênero?

CP - Sou um homem do povo. Sobre seriedades, e as da literatura em particular, é sempre mais conveniente ouvir os scholars. No entanto, livre pensar é só pensar, como diz o Millor, e para não fugir à pergunta arrisco uns palpites.

Quem é mais sério, Machado de Assis ou Luiz Fernando Veríssimo? Fernando Pessoa ou Bocage? O Carlos Drummond de Andrade de “Moça deitada na grama” ou o de “Amor natural” (“Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça/ de magnificar meu membro”)? Noel Rosa ou Vinícius de Morais? Chico Buarque ou Adoniran Barbosa? Glauco Mattoso ou Olavo Bilac?

Séria, portanto, é a literatura (conjunto da obra) de um escritor que sabe o que está fazendo, ou sabe por que está fazendo, seja qual for o seu estilo, não importa quantas palavras use -
o que distingue a seriedade do amadorismo inconsequente não é a quantidade de palavras, mas a escolha consciente delas.
Com o haicai, é claro, acontece a mesma coisa. Sem falar dos clássicos, há haicaistas brasileiros cuja obra é séria e consistente. E brasileira. Mas, se alguém publica um livro de “haicais”, e mal sabe quem foi Bashô, isto é, ignora solenemente as características básicas de um fazer poético específico, se apenas quer usar o nome exótico para que sua obra pareça mais chique, não pode ser levado a sério.
Eu mesmo, entretanto, sou “apenas um pobre amador”. Mas para mim nada é mero passatempo. Nem palavras-cruzadas.
Projeto? Sim. Mas só se concretizaria se me dispusesse a abrir mão de 3 ou 4 mil reais. Por enquanto, prefiro tomar chope.

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Haicais de Celso Pestana:

Explodem os fogos
E a rolha de um champanhe -
Feliz Ano Novo!

Preto Velho joga os búzios:
"Tá bonito, misinfio!"

Marina da Glória -
Mastros e cordas imóveis
Sob o mormaço.

Auto da Paixão.
A barba do Jesus Cristo
Está cai, não cai.

Vento frio...
A velhinha resmungona
Apressa o passo.

Dois passarinhos -
Também vou ajeitando
Meu ninho de pedras.



Celso Pestana é carioca, nascido e criado no sopé de Mangueira, Estação Primeira. Toco um pouco de pandeiro e não atravesso o samba. Autodidata, cresci com Monteiro Lobato, Eça de Queiroz, e amadureci com Jung. Já adulto, um sonho me acordou para os mistérios. A eles, e aos mistérios do amor, dediquei boa parte das minhas energias, guardando experiências que me aquecerão, talvez, no inverno que o outono destes meus 59 anos já anuncia. Sou casado, tenho três filhos - um macho e duas fêmeas -, e três yorkshires - um macho e duas fêmeas. Omnea mea mecum porto. Minha Estrela Solitária me conduz.

8 comentários:

  1. ótimo, em pergunta, resposta e antologia; e danado - a barba do jesus caindo é um achado. beleza, noris! parabéns!

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  2. Este é um caso achado no haicai! Celso é um poeta centrado na pessoa. Abraço e admiração.
    -
    lá se vai o verão
    os caquis já amadurecem
    nos galhos pendidos
    -
    josé marins
    -

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  3. Caro Rafael,

    parabéns pela escolha do entrevistado e pelo ótimo trabalho jornalístico! A leitura é um deleite só; perguntas e respostas que fazem por si só a internet valer a pena.

    O dia termina -
    Nariz na janela
    também congela.


    Um abraço de inverno alemão,

    Chris

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  4. Caros Rafael e Pestana:
    Belezura de bate-papo, hein!?
    Fosse ao vivo, eu gostaria de estar presente e neste calorão tomar algumas geladas com vocês.

    Abraço das montanhas,
    Diovvani.

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  5. Ah...
    Pestana, continua de pé sua visita ao Ninho.

    Dois passarinhos -
    Também vou ajeitando
    Meu ninho de pedras.

    Adorei ver especialmente aqui, este seu haicai.

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  6. Cito aqui o haicai de pestana que já ando falando por aí!

    Dois passarinhos -
    Também vou ajeitando
    Meu ninho de pedras.

    (Celso Pestana)

    Bela entrevista, Pestana é um autêntico Haijin!
    Rafael, parabéns também, teu blog é uma beleza!
    abraço do
    Jiddu

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  7. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente esse intelectual, o Celso Pestana!

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  8. Pestana

    é mestre
    e vê para aquém e para além do olhar.

    Parabéns!!!

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