Francisco Handa é doutor em História Social pela UNESP, monge do Templo Busshinji e um dos fundadores do Grêmio Haicai Ipê, o primeiro grupo de estudos sobre o gênero no Brasil. Seus haicais sempre me emocionaram, ora encontrava algum pela lista Haikai-l, ora num concurso ou pela internet. Eu estava um pouco tímido em abordá-lo por email, pois nunca tinha falado com ele, mas tentei. E consegui. Francisco recebeu bem a proposta da entrevista e eis aqui o resultado.
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Rafael Noris - Como você conheceu o haicai?
Francisco Handa - A primeira referência a algo chamado haiku, foi assim que ouvi falar, aconteceu lá pelos idos da década de setenta. Perguntei a minha avó sobre algum tipo de poesia japonesa. "Temos o haiku", disse ela. Tinha um senhor lá em Salto, onde nasci, um velho imigrante que compunha. Pedi um exemplar e ele exigiu que lhe mandasse algumas tiras de papel sulfite, cortado na vertical. Ele escreveu os haiku nas respectivas folhas. Foi assim que recebi os primeiros haikus escritos em japonês. Mais tarde, na década de oitenta, encontrei numa livraria o Livro de Haikais, em que Olga Savary traduzia Bashô, Issa e Shiki. Depois fiquei sabendo que se tratava do haiku. Outros livros cairam-me nas mãos como o de Pedro Xisto, de Waldomiro Siqueiro Júnior, depois Oldegar Vieira, Guilherme de Almeida e Milor Fernandes. De todos, o que despertou maior interesse foi o do baiano Oldegar. Meu encontro com H. Masuda Goga e Roberto Saito direcionaram a minha vida nesta composição. Uma composição mais próxima das traduções de Bashô, que causava um incômodo, um deslumbramento. Conheci também Paulo Leminski no 1o. Encontro Brasileiro de Hai-kai, no Centro Cultural São Paulo, em 1987. Ele realmente conhecia o haicai, conforme o ouvi em suas palestras. Entretanto, a sua composição era distanciada dos autores clássicos. Pesquisamos nas reuniões do Grêmio Haicai Ipê, por dois anos, antes de começar a compor. Pensamos a respeito da viabilidade de se compor com o termo de estação (kigo) e a utilização da métrica 5, 7, 5 versos. Em japonês se contava os sons. A primeira tentativa aconteceu no Grêmio. Acredito que o haicai na forma tradicional nasceu no Grêmio, sob a influência e coordenação de H. Masuda Goga. Os haicaístas japoneses duvidavam (duvidam) que em português pudesse se escrever numa estrutura semelhante ao deles. Foi assim que me iniciei na composição deste gênero.
RN - Aliás, você foi um dos idealizadores do Grêmio Haicai Ipê, mas está afastado de lá faz alguns anos. O que causou este distanciamento?
FH - Fiquei no Grêmio Haicai Ipê até setembro de 2001. Nesta época acabou a bolsa que recebia da Capes, para o doutorado em História Social, que fazia na Unesp - Assis. Assumi definitivamente meu posto como monge regular do Templo Busshinji, tendo que estender minhas atividades também aos sábados, justamente quando aconteciam as reuniões do grêmio. Foi também quando me ausentei dos Encontros Brasileiros de Haicai, a partir de então.
|RN - O que não significa que tenha se afastado do haicai, não é? Em sua opinião, o que é praticar o haicai nos dias de hoje?
FH - Venho de um mundo em que a observação e a experiência fazem parte de minha rotina. Num certo momento, precisei de um mestre, com quem aprendi, respeitei e tenho como referência de composição. Não posso compor diferente daquilo que ele me ensinou. Ele partiu, mas o haicai continuará existindo entre os seus praticantes. De alguma forma, houve uma continuidade que teria se iniciado com Masaoka Shiki, depois Takahama Kiyoshi, chegando ao Brasil com Nenpuku Sato, deste para H.Masuda Goga. Nesta linha estariam filiados também Jorge Fonseca Júnior e Fanny Dupré.
Como praticar o haicai? "Componha todos os dias", ensinava o velho Goga. Não se tinha que se preocupar de antemão se o haicai era bom ou mal, simplesmente fomentava a criação do momento.Nem ao menos era preciso inspiração como nas poesias convencionais. "O haicai é a composição do momento", falava. Outra lição era a crítica contra as composições idealizadas, ou seja a imaginação substituindo a experiência. Ele sabia como era o Festival das Estrelas, realizado em julho, em São Paulo. Como ele tinha sido convidado para julgar os trabalhos, fazia questão de se deslocar até o local. Em seu corpo magro e dolorido, enfrentava o frio cortante daquele mês.
Compor sobre aquilo que se desconhece, pode colocar em perigo a sutil beleza de algo que se acredita em sua autênticidade.Compor haicai é a atividade de observador para depois esquecer quem observa e quem é observado. É uma atividade não atividade contemplativa, portanto não modifica a natureza, ele também parte dela. Um haicaísta compõe e vai a campo para colher elementos de sua composição. É o que aconteceu com Bashô. Por isso, Bashô continua ainda em sua derradeira viagem pelos "caminhos estreitos do interior" acompanhado de Sora e outros. Alguns fazem companhia a eles, outros não abandonaram seus lares, continuam compondo e dando aulas aos seus alunos. Mas Bashô abandonou tudo para apenas compor.
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Haicais de Francisco Handa:
Estrela cadente.
Apenas desolação
nos olhos do idoso.
Ao cair relâmpago
um silêncio demorado
por alguns segundos.
Noite de verão.
As galinhas vão dormir
um pouco mais tarde.
Calendário novo.
Em primeiro vou contar
os dias vermelhos.
Final de verão.
Lágrimas de despedida
durante o velório.
Sobre a minha vida, nada muito interessante. Mas seria injusto se não mencionasse brevemente os professores que cruzaram por ela. No haicai, foi H. Masuda Goga. Tenho mestre no Budismo também, que norteia a minha vida. Fui bem sucedido ao escolher os orientadores acadêmicos tanto no mestrado como no doutorado. Tenho vinte e um anos de atuação como monge regular da tradição Soto Zen, no Templo Busshinji, em São Paulo. Sou instrutor de zazen naquela instituição e tradutor e secretário pessoal do Superior Dosho Saikawa, em sua viagem missionária pela América do Sul.
Minha religião é o haicai e o ar que respiro, o Budismo Zen. Sou acossado por alguns demônios, como a pesquisa acadêmica que me assalta durante o sono, ainda hoje.
EXCELENTE!
ResponderExcluirReferência e reverência...
A afirmação de Handa de que a vivência antecede ao haicai como poema, é importante para os que desejam a divulgação dos princípios do haicai clássico em nosso país. A minha admiração ao monge-poeta.
ResponderExcluir-
leitura na tela --
deixo as palavras do monge
com o sol de outono
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josé marins
Acabei de ler O Que é Zen, do Francisco Handa. Recomendo a todos, várias vezes ele comenta a relação entre o haicai e o zen, mostrando o que eles tem em comum ou diferente. E embora o Zen não possa ser experimentado através de palavras, o livro é encantador e permite uma experiência muito interessante com ele.
ResponderExcluir=)
Eu gostaria de me comunicar com ele por email, pois sou estudante de história e gostaria de saber se a pesquisa dele é na área de história do Japão. Existe a possibilidade de eu obter o email dele?
ResponderExcluirTive a honra de conhecer Francisco Handa na Premiação do Concurso de Contos do Bunkyo, no qual fui um dos agraciados.
ResponderExcluirUm homem de grande simplicidade e simpatia. Como bem transmitem seus haicais.